Cidade de Blumenau, Brasil

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quarta-feira, 2 de março de 2011

PARECER DA PGFN: relação homoafetiva e Imposto de Renda

PARECER DA PROCURADORIA GERAL DA FAZENDA NACIONAL
(PGFN/CAT/Nº 1503/2010)

Requerimento administrativo de servidora federal para inclusão de dependente homoafetiva para efeitos fiscais. Legitimidade do pleito. Falta de vedação legal ou constitucional. Princípios da não discriminação e dignidade da pessoa humana.

I
O Departamento de Normas e Procedimentos Judiciais do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão – MPOG encaminha a esta Coordenação-Geral de Assuntos Tributários - CAT, pela Nota Técnica nº 47/2010/COGES/DENOP/SRH/MP, requerimento administrativo formulado por servidora pública federal, objetivando a inclusão cadastral de companheira homoafetiva como sua dependente para efeito de Imposto de Renda.

2. Acompanham o requerimento (i) cópia autenticada de instrumento particular de coabitação e outras avenças (sociedade entre conviventes); (ii) documento de identidade da servidora e da companheira; (iii) cópia da declaração anual de isento da companheira; e (iv) cópia de comprovantes de residência de ambas.

3. Esclarece a Nota Técnica nº 47/2010/COGES/DENOP/SRH/MP ser inaplicável à hipótese a legislação previdenciária que integra o companheiro homoafetivo ao rol de dependentes econômicos, posto se tratar de servidora federal, submetida a regime de previdência próprio distinto do regime geral. Obtempera, entretanto, inserir-se o tema dentre as matérias afetas à legislação tributária, cuja atribuição para se manifestar em caráter conclusivo é da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, o que ensejou sua redistribuição à CAT/PGFN.

4. É o breve relatório. Passa-se à manifestação.

II

5. A possibilidade de dedução de dependente da base de cálculo do IRPF encontra-se disciplinada nos arts. 4º, III e 8º, II, “b” e “c” da Lei nº 9.250/95, e no art. 77 do Decreto nº 3.000/99 (RIR/99). Ambos os normativos consideram como dependente “o companheiro ou a companheira, desde que haja vida em comum por mais de cinco anos, ou por período menor se da união resultou filho” (art. 35, II da Lei nº 9.250/95 c/c art. 77, § 1º, inciso II do Decreto nº 3.000/99).

6. A expressão companheiro ou companheira não colhe definição na legislação tributária, seja no texto da Lei nº 9.250/95, seja no RIR/1999. Socorre-se o aplicador do conceito adotado pelo direito privado, especificamente na Lei nº 8.971/94, que regulou o direito a alimentos e à sucessão dos companheiros solteiros, separados judicialmente, divorciados ou viúvos, de sexo diferente e que vivessem juntos há mais de cinco anos, ou do relacionamento houvesse prole. Posteriormente foi editada a Lei nº 9.278/96, que regulamentou o §3º do art. 226 da CF/88 e reconheceu a união estável como entidade familiar, definindo o regime jurídico civil da convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família. Igual previsão foi mais recentemente trazida pelo art. 1.723 do Código Civil de 2002, codificando como entidade familiar a união estável entre “o homem e a mulher”.

7. Sucede que o art. 109 do CTN deslegitima a transposição tout court de conceitos do direito privado para o direito tributário, nos seguintes termos:

“Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários” (CTN, art. 109) (sublinhamos).

8. A norma tributária, uma vez emanada pelos órgãos competentes, desgarra-se da vontade de seus autores e passa a constituir uma entidade autônoma, com a potencialidade ou a virtualidade de reger todos os casos que se apresentem, ainda que o legislador, ao ditá-la, não tenha tido em mente tais hipóteses. Esgota ela, assim, a regulação da matéria tributária, de modo a não deixar margem à emissão de juízos incongruentes ao seu objeto de preocupação.

9. A peculiaridade e autonomia do direito tributário decorre da necessária vinculação às condições de ordem política e econômico-financeira alcançadas pela determinação da lei. Não por outro motivo a lei tributária há de ser interpretada funcionalmente, levando em consideração a consistência econômica, a normalidade dos meios adotados e a finalidade ou função que o tributo visa desempenhar.

10. Essa concepção da legislação tributária não atinge as raias do direito livre ou da livre indagação. O que reclama é uma técnica especial de considerar os fenômenos, fatos ou situações relevantes para a tributação, de acordo com determinado índice de capacidade contributiva.

11. O sistema de referências do direito tributário, ao contrário de outros ramos, é afeto à relação econômica, pouco importando aspectos de ordem moral, religiosa ou próprios do direito de família. É o que se extrai, em matéria de impostos, do art. 145, §1º, da CF/88, que reza:


“Art. 145. (...)
§ 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”


12. À luz do art. 145, §1º, da CF/88, o legislador ordinário obrigatoriamente deve escolher como critério de tributação a capacidade contributiva do sujeito passivo, na condição de fato indicativo de riqueza capaz de suportar a imposição fiscal. Consoante sustenta Regina Helena Costa, “Tal riqueza, portanto, é a única diretriz que pode ser seguida pela tributação não vinculada a uma atuação estatal” .

13. Motivos de conveniência, utilidade, interesse em dar maior concisão e simplicidade ao texto levam o legislador muitas vezes a reportar-se a fórmulas léxicas simplificadas e idênticas a outros ramos do direito. Não servem, todavia, para transladar ao direito tributário fenômenos alheios à capacidade contributiva subjacente, que condiciona e delimita a imponiblidade passiva.

14. Um mesmo fenômeno da vida, nesse sentido, pode apresentar reflexos diversos, conforme o ramo do direito aplicável. Ao direito tributário, especialmente em matéria de imposto sobre a renda, interessa a relação econômica a que o ato deu lugar, exprimindo, assim, a condição necessária para que um indivíduo possa contribuir, seja qual for a sua forma externa. Os fatos, ou situações, são sempre considerados pelo seu conteúdo econômico e representam índices de capacidade contributiva, desconsiderando-se aspectos somente importantes para outros domínios.

15. É nesse contexto que devem ser interpretados os arts. 4º, III e 8º, II, “b” e “c” da Lei nº 9.250/95, e 77 do Decreto nº 3.000/99 (RIR/99), tanto na designação do destinatário legal da obrigação tributária, como na mensuração da base de cálculo e fixação da respectiva alíquota. O critério revelador da capacidade econômica sobrepõe-se à disciplina inscrita na Lei nº 8.971/94, na Lei nº 9.278/96 e no Código Civil de 2002, que se prestam aos propósitos que especificam, “mas não para definição dos respectivos efeitos tributários” (CTN, art. 109).

16. No silêncio da legislação tributária quanto aos limites imanentes do conceito de companheiro ou companheira, há de compreendê-lo no contexto do núcleo econômico e estável da união, não da figura jurídico-biológica da relação, calcada em noção de sexualidade por vezes arcaica. O direito tributário não se presta à regulamentação e organização das conveniências ou opções sexuais dos contribuintes. O que importa, em sítio tributário, é a capacidade contributiva vinculada à união de afeto, sem qualquer adstrição à sexualidade das partes.

17. O sexo biológico dos conviventes, destarte, é desimportante para aplicação dos arts. 4º, III e 8º, II, “b” e “c” da Lei nº 9.250/95, e 77 do Decreto nº 3.000/99 (RIR/99), posto circunscrita a regulação da Lei nº 8.971/94, da Lei nº 9.278/96 e do Código Civil de 2002 às esferas que lhes são próprias.

III

18. Não se pretende com a conclusão acima oficializar a união de pessoas do mesmo sexo, ou dar foros de legalidade ao companheirismo homoafetivo. Apenas se reconhece, sem prejuízo à unidade sistêmica do ordenamento, conseqüências tributárias advindas dessa união, diante de interpretação pura e simples da legislação fiscal.

19. A história jurídica da família, decerto, é fundada na vida em casal composta de um homem e uma mulher. A organização jurídica da família da idade contemporânea, também se diga, na maior parte dos países ocidentais foi feita a partir da estrutura do Código Civil Francês de 1804, conhecido como Código Napoleônico. A fonte inspiradora desse código foi concebida no século XVIII .

20. Há muito a família do século XVIII deixou de ser o único núcleo econômico e de reprodução. Atualmente sujeitam-se à proteção do Estado outras formas de família, significando, teoricamente, o rompimento com uma moral sexual que não tem mais espaço com o declínio do patriarcalismo.

21. Uniões menos legítimas entre pessoas do mesmo sexo passaram a receber as influências do interdito à discriminação sexual (art. 3, IV, CF), aliado ao princípio da liberdade, do pluralismo e do reconhecimento da dignidade humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.

22. À luz do novel constitucionalismo, autoriza-se o reconhecimento da orientação sexual como direito oponível ao Estado. A afirmação da homossexualidade da união, preferência individual constitucionalmente garantida, não pode servir de empecilho à fruição de direitos assegurados à união heterossexual. A lei tributária, vinculada à isonomia de tratamento, não colhe razões que têm por fundamento o preconceito e a discriminação, sendo vedado ao intérprete limitar o que a lei expressamente não limita.

23. Um dos principais critérios de expropriação da cidadania sempre foi o de desconsiderar e marginalizar o diferente. Assim, sexo, casamento e reprodução, premissas e elementos básicos em que sempre esteve apoiado o direito de família, desatrelam-se do direito tributário, posto perfeitamente possível, no plano fiscal, uma coisa sem outra.

24. A discussão sobre as uniões entre pessoas do mesmo sexo, reitere-se, não significa apologia da homo ou da heterossexualidade, tampouco política de identidade ou de minorias. Significa que da situação em exame deve-se extrair apenas o que seja atinente ao direito tributário, sem que a Lei nº 9.250/95 e o Decreto nº 3.000/99 (RIR/99) possam ser utilizados para regular ou selecionar aspectos de natureza estritamente pessoais.

25. Tirante o fato de que a união de que se cogita é formada por pessoas do mesmo sexo, tudo o mais guarda os mesmos contornos da relação de companheirismo tradicional. Tal circunstância, entretanto, baseada em atributos estritamente biológicos, não legitima o discrimen fiscal, que há de primar pela identidade de tratamento tributário, a bem da neutralidade e isonomia fiscal.

26. Assim, no complexo e plural Estado Democrático de Direito, em que a interpretação jurídica se dá no contexto de uma disputa entre distintas compreensões paradigmáticas, deve-se estar atento à “neutralização de certezas”, visto que podem estar encobrindo pura ideologia. A centralidade dos direitos no sistema jurídico implica uma nova postura interpretativa, que não é livre, mas comprometida com resultados materiais, cujo eixo central e força motriz é a busca pela materialização da igualdade, que não se compraz com critérios puramente pautados no sexo dos contribuintes.

27. John Rawls, tentando conferir neutralidade aos operadores, propõe o denominado “véu da ignorância” (veil-of-ignorance apparatus) . Esta construção parte da ficção de uma posição original hipotética em que nenhum participante conhece sua posição na sociedade (social, econômica, cor, credo, raça, orientação sexual). Assim, será razoável que os participantes, longe de seus interesses individuais, da sua formação histórica e psicológica, escolham princípios que maximizem as vantagens gerais.

28. A pretensão de distanciamento pela adoção do “véu da ignorância” conduz ao prestígio da isonomia substantiva e esvaziamento da intolerância de gênero, constituindo substrato ético e jurídico a orientar o exegeta em face de preconceito limitador integrante da realidade histórica. Tendências hegemônicas, por certos períodos de tempo e em contextos determinados, acabam por importar interpretações inadequadamente condicionadas por aspectos de ordens já ultrapassadas. O conceito histórico de companheirismo não se confunde com o conceito tributário atual, compreendido no bojo das transformações por que têm passado os direitos fundamentais.

29. Themis, a deusa grega da Justiça, filha de Urano e Gaia, representada pelos renascentistas com uma faixa cobrindo-lhe os olhos, também simboliza a imparcialidade: não vê diferença entre as partes em litígio, fossem ricos ou pobres, poderosos ou humildes, grandes ou pequenos, homens ou mulheres. Suas decisões, justas e prudentes, não eram fundamentadas na personalidade, nas qualidades ou no poder das pessoas, mas na sabedoria das leis.

30. A abstração da identidade de gênero numa relação de convívio familiar duradouro não significa nenhuma exorbitância em seara tributária. É imposição de uma ordem jurídica objetiva e racional de valores, fundada, essencialmente, tanto na afirmação da dignidade da pessoa humana, como no direito legal vigente.

31. A evolução do direito público, não se pode ignorar, obrigou a uma convolação da legalidade em juridicidade. Trata-se, pois, de um novo entendimento da legalidade, surgido da crise da lei, com a modificação estrutural dos parâmetros da administração, sob a égide da coerência e unidade do ordenamento jurídico.

32. Necessário desmistificar o dogma da legalidade tributária, repetido de forma mecânica pelos juristas menos reflexivos . A legalidade universalizou-se como instrumento de proteção dos indivíduos contra o arbítrio estatal. Nada pode ser usurpada para se transformar em instrumento de opressão e cerceador de garantias fundamentais.

33. Há muito deixou a lei de ser o epicentro da revelação do direito justo, para ser vetor da ação interventora e conformadora do Estado na sociedade. A legalidade ou o legiscentrismo deixou de constituir restrição para ser instrumento de atuação. A lei passou a ser menos uma limitação ao poder do que um instrumento desse poder, a serviço de uma política pública (Manoel Gonçalves Ferreira Filho).

34. A herança do pensamento liberal ainda guarda marcas profundas na atuação fiscal, como um verdadeiro dogma, transmudando-se a legalidade num fim em si mesma. Apesar da legalidade ser um dos princípios cardeais do Estado de Direito, é preciso uma adaptação rápida da tessitura jurídica às múltiplas situações da vida que a sociedade moderna exige em constante mutação. Daí a importância de no lugar da legalidade pautar-se a administração tributária pela juridicidade, a ampliar-lhe o papel de executora não apenas da lei em sentido estrito, mas principalmente da Constituição e dos princípios que lhes são ínsitos. O direito é mais amplo do que a lei, e é àquele, não apenas a esta, que se vincula o Estado.

35. O objetivo do Estado é identificar o verdadeiro conteúdo e alcance da lei, insuficientemente expresso no texto normativo. É na própria Constituição que a administração encontra autorização para o exercício da tarefa de determinação e densificação do direito, havendo margem de escolha entre várias alternativas possíveis. E o Supremo Tribunal Federal, em regra, não confere guarida às teses legalistas.

36. Desprezar a existência de definições contextuais, além de subversivo à hierarquia normativa, poderia ensejar grave equívoco hermenêutico, com a atribuição aos preceitos constitucionais de significados dissonantes daqueles legítimos. Repudia a tese de recepção implícita de conceitos jurídicos preexistentes, olvidando-se em sua completude o texto constitucional.

37. É preciso distinguir o uso lingüístico de outrora do uso lingüístico atual (Karl Larenz). O exegeta não está propriamente jungido ao texto, mas ao significado, sem desconsiderar suas possíveis variações conforme o contexto em que estão inseridos.

38. O contexto proporciona a “concordância objetiva” entre as disposições legais, por indicar a prevalência da interpretação possível, segundo o sentido literal, que concorde materialmente com outras disposições. Pela própria hierarquia normativa da Constituição não se pode admitir soluções contrárias às indicadas pela Carta Maior.

39. O postulado ético-jurídico da igualdade de tratamento obsta a diversa valoração da aqui defendida, mormente se considerado o estágio da evolução histórica. O critério que impõe a análise dos fins (capacidade contributiva) fundamenta a adoção do sentido que melhor os promova. O princípio da capacidade contributiva é o único princípio justo no âmbito tributário; é, portanto, o único parâmetro justo de comparação para aplicação do princípio da igualdade (Klaus Tipke, Sobre a Unidade da Ordem Jurídica Tributária).

40. É preciso compreender a racionalidade própria da lei, e não a vontade histórica do legislador. O argumento histórico, ou genético, não se reveste de caráter absoluto. O objeto interpretado é o texto, não a vontade do legislador.

41. Indispensável reconhecer que não há um significado válido para todas as épocas. O significado nunca é definitivo, porque a variedade inabarcável e a permanente mutação das relações da vida colocam aquele que aplica a norma constantemente perante novas questões (Karl Larenz).

42. Pontes de Miranda já indicava a impossibilidade de a aplicação do direito ser alheia às vicissitudes inerentes à realidade jurídica e social: “os fenômenos que o direito estuda são naturais; transformam-se, evoluem, como o próprio homem.(..) Hoje o artigo tal do Código A pode não exprimir, exatamente, o que, no ano passado, exprimia; porque não diz ele o que está nas palavras, mas algo de mutável que as palavras tentaram dizer” (Sistema de Ciência Positiva do Direito).

43. A legislação tributária se aplica num contexto social e jurídico significativamente dinâmico. A mutação conceitual não afeta o texto como tal – esse fica inalterado, senão a concretização do conteúdo das normas. A alteração não é da letra ou do texto, mas do significado, do sentido e do alcance das disposições.

44. Imprescindível uma interpretação “ajustada ao tempo”, que se mantenha nos quadros do sentido literal dos preceitos. É o que se verifica com a expressão “companheiro ou companheira” inscrita nos arts. 35, II da Lei nº 9.250/95 e 77, § 1º, inciso II do Decreto nº 3.000/99, cuja polissemia alcança à perfeição as uniões homoafetivas, vez que não excluídas expressamente do texto.

IV

45. Reconhece-se que ao intérprete se impõe a tarefa nem sempre trivial, diante da indefinição terminológica dos arts. 35, II da Lei nº 9.250/95 e 77, § 1º, inciso II do Decreto nº 3.000/99, de harmonizar os ditames legislativos e solucionar os aparentes conflitos e situações de tensão que tendem a deflagrar no seio do mesmo sistema jurídico, em obediência aos princípios da unidade do ordenamento jurídico e da continuidade das leis. Para tanto se socorre dos critérios estabelecidos no indigitado art. 2º e §§ da LIC, aptos a resolver eventual e aparente antinomia entre as normas.

46. É certo que, em muitos casos, a simples demarcação da fronteira externa do âmbito normativo é suficiente para obstar a deflagração de antinomias. A simples compreensão do âmbito de atuação de cada normativo permitiria a coexistência harmônica entre eles, respeitados seus limites objetivos e o conteúdo jurídico de cada conceito. Foi o que se realizou nos itens 5 a 44 do presente Parecer, suficiente per se para acomodar a tensão consultada e embasar a manifestação jurídica desta PGFN.

47. Reforça o acima a inviabilidade jurídica material de outra conclusão, a bem da presunção de constitucionalidade dos dispositivos examinados.

48. Consoante escólio de J. J. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 3ª ed., pg. 1151, “o princípio da prevalência da Constituição impõe que, dentre as várias possibilidades de interpretação, só deve escolher-se uma interpretação não contrária ao texto e programa da norma ou normas constitucionais”. Isso em atenção ao “princípio da conservação das normas”, segundo o qual “uma norma não deve ser declarada inconstitucional quando, observados os fins da norma, ela pode ser interpretada em conformidade com a Constituição”(obr. cit., pg. 1151).

49. No Brasil, essa técnica é chamada de interpretação conforme a Constituição. A despeito da falta de disciplinamento legal, no caso de duas interpretações possíveis de uma mesma norma, há de se preferir aquela que se revele mais compatível com as decisões fundamentais do Texto Magno. Cuida-se tão somente de manifestação do princípio da supremacia da Constituição, a impor que todas as normas jurídicas ordinárias sejam interpretadas de acordo com o texto constitucional.

50. A exclusão de interpretações inconstitucionais, demais, guarda coerência com o princípio da unidade da ordem jurídica. A Constituição da República, conforme assevera Gilmar Ferreira Mendes, in Jurisdição Constitucional, Saraiva, pg. 223, figura como “contexto superior (vorrangiger Kontext) das demais normas. As leis e as normas secundárias devem ser interpretadas, obrigatoriamente, em consonância com a Constituição. Dessa perspectiva, a interpretação conforme a Constituição configura uma subdivisão da chamada interpretação sistemática”.

51. Além de garantir harmonia sistêmica ao ordenamento jurídico, constitui a interpretação conforme a Constituição instrumento de conservação da presunção de constitucionalidade e do pensamento “favor legis” (Gilmar Ferreira Mendes, obr. cit., pg. 223) que militam em face da norma. Dentro dos limites da expressão literal do seu texto, não se pode admitir tenha o legislador pretendido editar norma inconstitucional, razão pela qual ganha prevalência uma interpretação conciliadora, que não violente a literalidade da norma, tampouco altere a concepção original do texto normativo, mas preserve sua validade jurídica diante do controle de constitucionalidade.

52. Mister observar que a controvérsia sub examine gravita em torno da correta interpretação do art. 35, II da Lei nº 9.250/95 c/c art. 77, § 1º, inciso II do Decreto nº 3.000/99. Ambos os normativos consideram como dependente para efeito do IRPF “o companheiro ou a companheira, desde que haja vida em comum por mais de cinco anos, ou por período menor se da união resultou filho”.

53. Há posicionamento da Receita Federal do Brasil - Nota Cosit nº 277, de 15 de agosto de 2008; Nota Cosit nº 288, de 26 de agosto de 2008 - que interpreta esses normativos no sentido de que só se enquadraria na previsão legal a união estável entre um homem e uma mulher. O texto legal, entretanto, na sua expressão literal, não estabelece tal condição, e mesmo que assim o fizesse há manifestação da Advocacia-Geral da União e do Ministério Público Federal na ADPF nº 132/RJ e na ADI nº 4.277 no sentido de “contemplar os parceiros de união homoafetiva no conceito jurídico de família”.

54. Repousa sobre o presente caso, destarte, duas possibilidades objetivas de interpretação do mesmo normativo. Apesar de considerar suficientes os elementos contextuais antes descritos, permite-se ainda perquirir, em reforço intelectivo, dentre as interpretações possíveis, qual aquela que melhor se afeiçoa ao perfil constitucional da Carta de 1988.

55. Nesse contexto, importa interpretar os normativos vigentes, dentre outros, à luz do princípio da isonomia, inscrito no Preâmbulo, no art. 5º, e especificamente no art. 150, II da CF/88, que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente.

56. O preceito magno da igualdade, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, in Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, Malheiros, 3ª ed., pg. 9, “é norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador”. Traduz-se na impossibilidade de a lei ser fonte de privilégios ou perseguições, com seus destinatários interditos de imprimir tratamento não paritário a situações jurídicas equivalentes.

57. Alhures se controvertia os destinatários do princípio da igualdade. Alguns entendiam que o princípio da igualdade destinava-se apenas ao legislador. A isonomia, portanto, deveria ser na própria lei. Outros entendiam que o intérprete era também destinatário do princípio da igualdade. Deste modo, a igualdade, além de na lei, deveria ser perante a lei. Hoje essa controvérsia encontra-se superada, com a nítida noção de que o enunciado genérico da isonomia abrange tanto o intérprete quanto o legislador, na magna tarefa de converter a teórica proclamação da igualdade em “guia de uma práxis efetiva, reclamada pelo próprio ditame constitucional”(Celso Antônio Bandeira de Mello, obr. cit., pg. 11).

58. A proeminência do princípio da igualdade ganha expressão no caso excogitado na medida em que permite aferir se o marco biológico do sexo dos conviventes, em si mesmo, é fator juridicamente idôneo para servir como critério de desequiparação por obra do intérprete. Ou seja, poderia o intérprete, a despeito da omissão legislativa específica, dar tratamento desuniforme à identidade de gênero da união baseado em norma alheia ao domínio respectivo?

59. Esse é o cerne da questão. Saber qual interpretação se compatibiliza com os valores constitucionais de regência, em especial o princípio da isonomia, vez que o agravo à igualdade radica-se justamente na escolha, pela lei ou pelo intérprete, de certos fatores diferenciais que não poderiam ter sido eleitos como matriz do discrimen.

60. É certo que aos destinatários da isonomia não é defeso estabelecer distinções amparadas na razoabilidade que guardem nexo de causalidade com o próprio fim do direito. O já tantas vezes lembrado Celso Antônio Bandeira de Mello, obr. cit., pg. 17, ensina que “as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição”. O que não se permite é a escolha de fator arbitrário ou aleatório, sem pertinência lógica com a diferenciação procedida, tão somente por razões fortuitas, ideológicas, preconceituosas ou injustificadas.

61. Para verificar a compatibilidade da interpretação diferenciadora com o sistema normativo constitucional, deve-se investigar, de um lado, aquilo que foi adotado como critério discriminatório, e de outro, a existência de justificativa racional, capaz de fornecer fundamento lógico ao traço desigualador acolhido em relação ao específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade consagrada. Na esteira da lição de Pimenta Bueno, in Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, ut Celso Antônio Bandeira de Mello, obr. cit., pg. 18:

“A lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania”

62. A distinção ora debatida leva em conta o sexo dos parceiros homoafetivos. Ocorre ser inadmissível, perante a isonomia, discriminar pessoas ou situações mediante traço distintivo genético ou sexual, sem qualquer justificativa jurídica para tanto. Não se pode dispensar a uniões com a mesma finalidade estabilizadora e familiar tratamento diferenciado tão somente em razão da orientação sexual íntima dos parceiros. Discriminação alguma pode ser feita simplesmente com base no critério biológico ou pessoal. O fator sexual da relação familiar e afetiva jamais poderia ser tomado como critério diferencial, sem fomento jurídico satisfatório.

63. Não há como se desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores justificadores da desigualdade. Sintetizando: a interpretação que tomar a orientação sexual da união como móvel de discriminação entre pessoas, a fim de lhes dar tratamento díspar e à margem do protegido, veicula orientação incompatível com a Carta Magna e por isso de possibilidade jurídica excluída, posto o direito previsto no regime legal não estar correlacionado com a diferença que toma em conta o intérprete por ocasião de sua aplicação.

64. Entendimento anterior da administração tributária, entretanto, dá pela congruência lógica entre a distinção de regimes estabelecida e a desigualdade de situações correspondentes à interpretação encetada. A pertinência do desequilíbrio de tratamento estaria fulcrada na ausência de lei específica em sentido inverso, a propiciar obrigatória vis atractiva da disciplina prevista na Lei nº 8.971/94, na Lei nº 9.278/96 e no Código Civil de 2002.

65. A autonomia da disciplina fiscal em relação a outros domínios do direito privado já foi oportunamente discutida nos itens 5 a 17 do presente. Debanda ainda as raias do jurídico pensar que fator biológico, pura e simplesmente, poderia figurar como razão superior para discrimen fiscal, ou mesmo que uma suposta política de desequiparação dos direitos civis dos homoafetivos estaria a emprestar justificação e fundamento suficiente à distinção tributária por arrastamento.

66. As vantagens ou restrições pautadas em alguma peculiaridade distintiva hão de ser conferidas em atenção a situações compatíveis com as finalidades acolhidas no sistema constitucional. Na lição transcrita de Pimenta Bueno, observa-se que qualquer especialidade ou prerrogativa deve estar fundada só e unicamente em razão muito valiosa do bem público, sob pena de antijuridicidade ou tirania.

67. Além de extra-jurídicas as razões invocadas, não se vislumbra, in concreto, qualquer vínculo de correlação lógica, em função dos direitos constitucionalmente protegidos, que resulte diferenciação de tratamento fundada em motivo valioso para o bem público. Só por um absurdo poder-se-ia sustentar que um suposto discrimen às relações homoafetivas traria consigo valores constitucionalmente informativos das discriminações aventadas.

68. Um exame de fundo na teleologia da norma, aliás, parece conduzir a valor axiológico absolutamente diverso do acima propalado.

69. Por este prisma, pouco importa se é homo ou hetero a união que se cogita. O que importa é a estabilidade e finalidade familiar da relação, pois o elemento teleológico imanente à espécie, conjugado com o princípio da igualdade e da dimensão social dos direitos previstos na Constituição, está a indicar a correta interpretação que merece prevalecer na hipótese, o que afasta qualquer opção contrária ao conteúdo axiológico da norma interpretada.

70. O postulado da isonomia, que tanto pode ser visto como exigência de tratamento igualitário, quanto como proibição de tratamento discriminatório, reclama do exegeta cautela na interpretação da norma. Celso Antônio Bandeira de Melo, obr. cit, pg. 45, sustenta:

“Não se podem interpretar como desigualdades legalmente certas situações, quando a lei não haja “assumido” o fator tido como desequiparador.(...) Então, se a lei se propôs distinguir pessoas, situações, grupos, e se tais diferenciações se compatibilizam com os princípios expostos, não há como negar os discrimens. Contudo, se a distinção não procede diretamente da lei que instituiu o benefício ou exonerou de encargo, não tem sentido prestigiar interpretação que favoreça a contradição de um dos mais solenes princípios constitucionais”.

71. A presunção genérica e absoluta é pela compatibilidade da norma com o princípio da igualdade. Circunstâncias ou condições pessoais secundárias ao ramo do direito que se tem de aplicar, conquanto correlacionadas com os direitos da personalidade, não autorizam supor tenha a norma pretendido desigualar situações e categorias de indivíduos. Afrontaria a Constituição conceder vantagens ou benefícios a determinado segmento ou grupo sem contemplar outros que se encontram em condições idênticas, como se houvesse comunhão de vida de segunda classe. Se este intento de desigualdade não está explícito, intolerável, antijurídica e inconstitucional qualquer interpretação desequiparativa. A interpretação há de ser compatível com a Constituição, à vista dos princípios da unidade do direito, do “favor legis” e da conservação das normas jurídicas, mormente diante da disposição contida no art. 5º da LICC:

“Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”

72. Excluída a interpretação inconstitucional, por hostilidade à garantia da isonomia, a exegese que melhor professa o valor constitucional da igualdade é aquela que reconhece o direito de inclusão do companheiro homoafetivo como dependente econômico para fins do IRRF.

73. Oportuno registrar, nesse ínterim, que o judiciário tem avançado a passos largos no tema da equiparação dos direitos civis dos homossexuais, sem qualquer peia ou resquício discriminatório, verbis:

“PLANO DE SAÚDE. COMPANHEIRO. "A relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro dependente em plano de assistência médica" (REsp nº 238.715, RS, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, DJ 02.10.06). Agravo regimental não provido. AGA 200702565624 STJ DJE DATA:05/11/2008

PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO HOMOAFETIVA. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. OFENSA NÃO CARACTERIZADA AO ARTIGO 132, DO CPC. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. ARTIGOS 1º DA LEI 9.278/96 E 1.723 E 1.724 DO CÓDIGO CIVIL. ALEGAÇÃO DE LACUNA LEGISLATIVA. POSSIBILIDADE DE EMPREGO DA ANALOGIA COMO MÉTODO INTEGRATIVO. 1. Não há ofensa ao princípio da identidade física do juiz, se a magistrada que presidiu a colheita antecipada das provas estava em gozo de férias, quando da prolação da sentença, máxime porque diferentes os pedidos contidos nas ações principal e cautelar. 2. O entendimento assente nesta Corte, quanto a possibilidade jurídica do pedido, corresponde a inexistência de vedação explícita no ordenamento jurídico para o ajuizamento da demanda proposta. 3. A despeito da controvérsia em relação à matéria de fundo, o fato é que, para a hipótese em apreço, onde se pretende a declaração de união homoafetiva, não existe vedação legal para o prosseguimento do feito. 4. Os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, dês que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas mulheres. Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu. 5. É possível, portanto, que o magistrado de primeiro grau entenda existir lacuna legislativa, uma vez que a matéria, conquanto derive de situação fática conhecida de todos, ainda não foi expressamente regulada. 6. Ao julgador é vedado eximir-se de prestar jurisdição sob o argumento de ausência de previsão legal. Admite-se, se for o caso, a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo legislador. 5. Recurso especial conhecido e provido. RESP - RECURSO ESPECIAL – 820475 STJ DJE DATA:06/10/2008 RDTJRJ VOL.:00077 PG:00097

PROCESSO CIVIL E CIVIL - PREQUESTIONAMENTO - AUSÊNCIA - SÚMULA 282/STF - UNIÃO HOMOAFETIVA - INSCRIÇÃO DE PARCEIRO EM PLANO DE ASSISTÊNCIA MÉDICA - POSSIBILIDADE - DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO-CONFIGURADA. - Se o dispositivo legal supostamente violado não foi discutido na formação do acórdão, não se conhece do recurso especial, à míngua de prequestionamento. - A relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro dependente em plano de assistência médica. - O homossexual não é cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana. - Para configuração da divergência jurisprudencial é necessário confronto analítico, para evidenciar semelhança e simetria entre os arestos confrontados. Simples transcrição de ementas não basta. RESP - RECURSO ESPECIAL – 238715 STJ DJ DATA:02/10/2006 PG:00263 RDTJRJ VOL.:00073 PG:00105 RIOBTP VOL.:00209 PG:00162 RNDJ VOL.:00087 PG:00095

PREVIDENCIÁRIO. REMESSA OFICIAL TIDA POR INTERPOSTA. PENSÃO POR MORTE. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. RELACIONAMENTO HOMOAFETIVO. POSSIBILIDADE. PROVA TESTEMUNHAL ROBUSTA. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA PRESUMIDA. CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. JUROS DE MORA. CORREÇÃO MONETÁRIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. Remessa oficial, tida por interposta, de sentença proferida na vigência da Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997. Não incide, na hipótese, os artigos 475, § 2º, do Código de Processo Civil ou 13 da Lei nº 10.259/01, em virtude de não ter sido demonstrado que o conteúdo econômico do pleito é de valor inferior a 60 salários mínimos. 2. "A lei, só por si, não extingue comportamentos racistas, preconceituosos, discriminatórios ou mesmo criminosos, necessitando, antes, de uma conscientização da coletividade sobre serem odiosas as condutas assim tipificadas. Não é a falta de uma lei específica sobre o reconhecimento das uniões homoafetivas que vai alijar o requerente do seu direito de obter, comprovados os requisitos objetivos da união (convivência, relação amorosa, dependência econômica e publicidade da condição), o reconhecimento da existência de uma união estável propiciadora da pensão por morte requestada" (AC 2002.38.00.043831-2/MG, Rel. Desembargadora Federal Neuza Maria Alves da Silva, Segunda Turma, DJ p.25 de 19/01/2007) 3. A declaração particular colacionada aos autos, equiparável à prova testemunhal, bem como as testemunhas ouvidas em juízo, as fotos do casal, cartões, correspondências e títulos bancários com endereço comum, são uníssonos em confirmar a relação duradoura de companheirismo entre o autor e seu falecido companheiro. 4. A Lei nº. 8.213/91 somente exige início de prova material para fins de comprovação de tempo de serviço, não ocorrendo tal exigência para fins de comprovação de união estável. No mais, a teor do art. 16, §4º, da Lei 8.213/91, a dependência mútua entre companheiros é presumida. 5. Atendidos os requisitos indispensáveis à concessão do benefício previdenciário (arts. 74, da Lei 8.213/91), é devida a pensão por morte, desde a data do requerimento administrativo. Sentença mantida. 6. Os juros de mora de 1% ao mês devem ser contados da citação, no tocante às prestações a ela anteriores e, da data do vencimento, para as posteriores. Orientação da Primeira Seção e do STJ. 7. A correção monetária incide sobre o débito previdenciário, a partir do vencimento de cada prestação, nos termos da Lei nº. 6.899, de 8 de abril de 1981, conforme Manual de Orientação de Procedimentos para os Cálculos na Justiça Federal. 8. Os honorários de advogado devem ser reduzidos para 10% sobre o valor da condenação, correspondente às parcelas vencidas até o momento da prolação da sentença, de acordo com a Súmula nº. 111 do Superior Tribunal de Justiça e artigo 20, § 3º, do CPC. 9. Apelação e remessa oficial, tida por interposta, parcialmente providas, na forma dos itens 6 a 8. AC - APELAÇÃO CIVEL – 200535000067997 TRF1 e-DJF1 DATA:05/03/2009 PAGINA:174

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – MILITAR – PENSÃO POR MORTE. COMPANHEIRO - UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA - INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 226, CF; ART.1723, CC/02 – PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DA LIBERDADE, DA IGUALDADE, DA NÃO DISCRIMINAÇÃO - INSTRUÇÃO NORMATIVA 25/00/INSS – APLICAÇÃO – ISONOMIA - COMPROVAÇÃO – PASEP – LEVANTAMENTO DE VALORES – IMPOSSIBILIDADE – INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO JUÍZO - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS - ART.20, §4º, CPC - APRECIAÇÃO EQÜITATIVA DO JUIZ - PRECEDENTES. -Objetivando a parte autora, o reconhecimento da união estável que manteve com militar falecido -Sr.Luiz Carlos Pinto de Freitas-, e o levantamento dos valores existentes na conta do PASEP, ajuizou o presente feito. -Restou o mesmo julgado parcialmente procedente, “para RECONHECER, exclusivamente para fins previdenciários junto à Marinha do Brasil, a existência de sociedade de fato entre o Autor e o Sr.Luiz Carlos Pinto de Freitas, bem como para CONDENAR a UNIÃO FEDERAL a conceder a pensão por morte pleiteada e pagar as parcelas devidas, a contar da data do óbito, cujos valores deverão ser corrigidos monetariamente e acrescidos de juros de mora no percentual de 0,5% (meio por cento) ao mês (STF, Plenário, RE453740/RJ, Rel.Min.Gilmar Mendes, DJ de 24.08.07), estes a partir da data da citação, e, em conseqüência, DELARO a nulidade do ato administrativo que reconheceu direito à mesma pensão ao segundo réu, Sr.ALARCON BARBOSA DE FREITAS, isentando-o de devolução das quantias recebidas até a definitiva suspensão dos pagamentos mensais. Faculto à União Federal promover a imediata suspensão dos pagamentos mensais referentes à pensão que vem sendo paga ao segundo Réu, independentemente do trânsito em julgado da sentença.”.Condenada a União Federal na verba honorária de 5% sobre o montante devido, e o Alarcon Barbosa de Freitas, em 5% do valor da causa, monetariamente atualizado, com custas ex lege. -No que concerne à liberação dos valores creditados, em nome do de cujus, na conta do PASEP, nos termos do verbete nº 161, da Súmula da jurisprudência do STJ, a competência para autorizar levantamento dos valores relativos ao PIS/PASEP e FGTS, em decorrência do falecimento do titular da conta, é da Justiça Estadual, pelo que, absoluta incompetência do Juízo, como decidido. -“Há que se aplicar o direito à luz de diversos preceitos constitucionais e não apenas atendo-se à interpretação literal do art. 226, §3º da Constituição Federal, que não diz respeito ao âmbito previdenciário, inserindo-se no capítulo 'Da Família', sendo certo que não houve de parte do constituinte, exclusão dos relacionamentos homoafetivos, com vista à produção de efeitos no campo do direito previdenciário, configurando-se mera lacuna, que deverá ser preenchida a partir de outras fontes do direito” (STJ, RESP 395904, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ de 06/02/2006). -Conforme registrado pelo STF no julgamento da ADI 3300 MC/DF, o magistério da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando princípios fundamentais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não-discriminação e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes conseqüências no plano do Direito e na esfera das relações sociais. -“Uma vez reconhecida, numa interpretação dos princípios norteadores da Constituição pátria, a união entre homossexuais como possível de ser abarcada dentro do conceito de entidade familiar e afastados quaisquer impedimentos de natureza atuarial, deve a relação da Previdência para com os casais de mesmo sexo dar-se nos mesmos moldes das uniões estáveis entre heterossexuais, devendo ser exigido dos primeiros o mesmo que se exige dos segundos para fins de comprovação do vínculo afetivo e dependência econômica presumida entre os casais (...), quando do processamento dos pedidos de pensão por morte e auxílio-reclusão.” (Revista do TRF/4ª Região, vol. 57/309-348, 310, Rel. Des. Federal João Batista Pinto Silveira - grifei) in STF, ADI 3300 MC/DF. -"(...) O reconhecimento do direito à pensão previdenciária para companheiro(a) de homossexual, no RGPS, consubstanciado na Instrução Normativa nº 25, de 7 de junho de 2000, editada pelo INSS, pode ser utilizada, por analogia, para a concessão de tal benefício aos servidores públicos federais, em homenagem ao princípio da isonomia (...)"(TRF 5ª R. - AC 238.842 - RN - 1ª T. - Relª Desª Fed. Margarida Cantarelli - DJU 13.03.2002). -Inexistindo situação destoante, in casu, do apreciado, em epígrafe por este Colegiado, o inconformismo não tem como prosperar. -Destarte, comungo do mesmo sentir da decisão de piso, na medida em que, a meu juízo, o acervo probatório, conforme ali declinado, cuja fundamentação, ora se incorpora, bem delineou a sociedade de fato constituída, em especial o seguro de vida instituído pelo de cujus em favor do companheiro, ora apelado, o que conduz à manutenção do decisum, sob esta vertente. -Quanto ao termo inicial para o pagamento da pensão em comento, não há que se falar em habilitação tardia, face ao que se extrai dos documentos acostados aos autos (fls.59; 72), e como bem explicitado na sentença objurgada, no sentido de que, “O direito do autor retroage à data do óbito, pois requereu administrativamente a pensão apenas doze dias após (fl.59), e muito antes do deferimento da pensão em favor do segundo Réu, em 02.05.2001 (fl.72). (...).”, pelo que, de rigor a sua manutenção, também sob este flanco. -Por derradeiro, por força da remessa necessária, no que pertine à verba honorária fixada em desfavor do ente federativo, a teor do §4º, do artigo 20, do CPC, sopesados os critérios estabelecidos nas alíneas “a”, “b” e “c” do parágrafo 3º do citado artigo, e ante a ausência de complexidade da vexata quaestio, a reforma, neste aspecto deve ser efetivada, de molde a se preservar a regra, arbitrando-se em R$ 1.500,00 (um mil e quinhentos reais). -Recurso desprovido, remessa necessária, parcialmente provida. APELRE - APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO – 464994 TRF2 E-DJF2R - Data::05/05/2010 - Página::187/188”

74. Fácil antever o resultado provável de eventual judicialização do assunto mercê de deferimento administrativo, mormente quando a própria AGU, na condição de representante judicial da União e em sede de controle abstrato de constitucionalidade, reconhece direito análogo ao ora vindicado. A previsibilidade do desfecho de potencial contencioso jurisdicional permite prevenir os ônus que a sucumbência acarretaria em detrimento do princípio da economicidade administrativa.


V


75. Sem embargo do acima, mister salientar, por derradeiro, que o art. 226, §3º, da CF/88 não proíbe o reconhecimento de direitos civis à união de pessoas do mesmo sexo. Limita-se a conferir proteção à união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, para efeito de a lei facilitar sua conversão em casamento, no que foi seguida pela legislação ordinária.

76. A tutela do modelo tradicional de família prevista na Lei Maior longe está de constituir a chamada “norma de clausura”, segundo a qual tudo o que não for juridicamente permitido encontra-se automaticamente proibido. Isso levaria a compreender que o silêncio equivale a proibição, com negação de outras formas de organização familiar, sem atentar para preceptivos de igual ou superior valor principiológico espraiados no texto constitucional.

77. A interpretação isolada do artigo 226, §3º da CF/88 deve ser substituída por uma interpretação sistemática, que não pressupõe incompatibilidade entre a união estável entre pessoas do mesmo sexo e a união estável entre pessoas de sexos diferentes. Sustenta Luís Roberto Barroso em Parecer sobre o tema:

“O não reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas não beneficia, em nenhuma medida, as uniões convencionais e tampouco promove qualquer valor constitucionalmente protegido. (...) a referência a homem e mulher não traduz uma vedação da extensão do mesmo regime às relações homoafetivas. Extrair desse preceito tal conseqüência seria desvirtuar a sua natureza: a de uma norma de inclusão. (...) Não se deve interpretar uma regra constitucional contrariando os princípios constitucionais e os fins que a justificaram.”

78. A par do art. 226, §3º, “a Constituição Federal proclama o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à intimidade (art. 5º, caput) e prevê como objetivo fundamental, a promoção do bem de todos, ‘sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação’ (art. 3º, IV). Dispõe, ainda, que ‘a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais’ (art. 5º, XLI). Portanto, sua intenção é a promoção do bem dos cidadãos, que são livres para ser, rechaçando qualquer forma de exclusão social ou tratamento desigual” .

79. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da expressa vedação de qualquer forma de discriminação sexual constitui impediente jurídico à proscrição do reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo, com os efeitos fiscais que lhe são imanentes. As uniões homoafetivas são fatos lícitos e relativos à vida privada de cada indivíduo, fugindo à atuação estatal intervir na orientação sexual para marginalizar ou excluir do seu manto as relações homoafetivas.

80. O centro da tutela constitucional não se põe na exclusividade do casamento. Antes abarca a pluralidade dos modelos familiares que, fundados ou não no vínculo conjugal, contenham os pressupostos para a tutela da dignidade da pessoa humana. Far-se-á ilegítima qualquer interpretação restritiva dos núcleos familiares calcada na orientação sexual dos conviventes em desapreço aos princípios constitucionais acima aludidos.

81. Não se entenda, com isso, que ao intérprete se outorga qualquer liberdade nesse mister. A revés, encontra-se ele condicionado por todo o contexto constitucional, pelas exigências dos princípios fundamentais e pela exegese sistemática e axiológica, suficientemente vigorosas a orientá-lo com segurança.

82. Malgrado se reconheça que determinadas situações estão fora da zona de certeza de um termo preciso, o art. 246 da CF há de ser interpretado em consonância com princípios constitucionais outros, como o da dignidade da pessoa humana, posto inviável segregar-lhe o núcleo conceitual.

84. E a Administração tributária, por óbvio, também se subordina aos direitos fundamentais. A vinculação da administração fazendária às normas de direitos fundamentais torna nulos os atos praticados com ofensa ao sistema desses direitos.

85. Não se trata, in specie, de exercer juízo de inconstitucionalidade de uma lei e recusar-lhe aplicação por entendê-la discordante de um direito fundamental. Mas compreender a lei conforme a Constituição, dando-lhe sentido compatível com a norma fundamental.

VI

86. Por todo o exposto, conclui-se:

(i) a expressão companheiro ou companheira não encontra definição na legislação tributária, sendo desimportante a sexualidade dos companheiros para aplicação dos arts. 4º, III e 8º, II, “b” e “c” da Lei nº 9.250/95, e 77 do Decreto nº 3.000/99 (RIR/99);
(ii) as uniões homoafetivas estão compreendidas na polissemia dos arts. 35, II da Lei nº 9.250/95 e 77, § 1º, inciso II do Decreto nº 3.000/99, razão pela qual vedado ao intérprete limitar o que a lei expressamente não limita;
(iii) a paridade de tratamento tributário é direito constitucional que interdita qualquer exegese fundada na discriminação de gênero. Embora certo que na perspectiva biológica, sociológica ou antropológica constituam realidades distintas a união duradoura entre pessoas do mesmo sexo e a de duas pessoas de sexo diverso, no domínio tributário a equiparação de tratamento é fundamento material de incidência;
(iv) não se colhe do art. 226, §3º, da CF/88 “norma de clausura”, a tornar proibido tudo o que não estiver literalmente previsto. Além da sua interpretação sistemática com outros preceptivos de igual ou superior hierarquia axiológica, o elemento fundamental do art. 246 da CF é a família, não o sexo dos parceiros, cujo objetivo foi alargar a cobertura constitucional dos direitos fundamentais, não o de restringir ou limitar, implícita ou explicitamente, à união heterossexual;
(v) as relações homoafetivas, à míngua de previsão explícita na legislação tributária, não podem ser tratadas como união de vida de 2ª categoria para efeitos fiscais. Não implica isso extravagância ou juízo de inconstitucionalidade, mas compreensão da lei tributária conforme a Constituição, dando-lhe sentido compatível com a norma fundamental;

VII

87. Posto isto, uma vez demonstrado, quantum satis, a viabilidade e procedência do requerimento administrativo objeto da Nota Técnica nº 47/2010/COGES/DENOP/SRH/MP, opina-se pela juridicidade da inclusão cadastral de companheira homoafetiva como dependente de servidora pública federal para efeito de dedução do Imposto de Renda, desde que preenchidos os demais requisitos exigíveis à comprovação da união estável disciplinada nos arts. 4º, III e 8º, II, “b” e “c” da Lei nº 9.250/95, e no art. 77 do Decreto nº 3.000/99 (RIR/99).

É o Parecer jurídico. À consideração superior.
COORDENAÇÃO-GERAL DE ASSUNTOS TRIBUTÁRIOS, em 14 de julho de 2010.

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